Wednesday, February 29, 2012

Le moi errant: Distância


A distância tem várias medidas. A mais habitual é o espaço. Temos o ponto A e o ponto B e medimos quantas unidades de coisas existem nesse espaço. Se formos europeus diremos metros para traduzir essa coisa. Se formos americanos diremos milhas. O importante aqui é a quantidade fisica para sabermos o que separa os dois pontos. Outra forma de medir a distância é através do tempo. No fundo é saber quantas batidas a um ritmo certo ocupam entre alguém ir do ponto A ao ponto B. A isto chamamos minutos, horas ou dias.

Desde que comecei a viagem, descobri que ainda não inventaram uma medida para a distância da mesma. Eu sei que já passaram mais de três meses desde que a iniciei, ou que estou a mais de 10.000 kms da minha cidade natal. Mas isto não mede a distância que já precorri. Em viagem o tempo multiplica-se pelos momentos, e o espaço diminui-se pelo contato. Isto muda todos os conceitos que aprendeste ao longo da tua vida. Julgo que transmitir a distância é a tarefa mais difícil que tenho. Hoje, 3 meses depois, já aconteceu tanto, que não sou o mesmo que partiu. No entanto, nunca me senti tão próximo de mim próprio.

Tuesday, February 28, 2012

História de uma foto: Vida




A primeira vista é uma bela paisagem. Tinha uma boa perspectiva sobre Jodhpur. O horizonte era belo e não havia como não tirar esta foto. Estava numa pequena varanda no forte de Jodhpur. Nada me obstruia a visão e por vezes tinha a ilusão de estar em pleno ar.

Acabei por ficar uns momentos. Percebi a diferença entre o momento que se capta e a realidade que é captada. Se no início fotografei pelo horizonte, a escolha apareceu por outro motivo. Quando ficas parado a ver esta paisagem ela transforma-se. Dos tetos desta cidade começas a distinguir movimento. Aqui e ali vês uma mulher a secar a roupa ou um homem a repousar. Quanto mais tempo ficas, mais o horizonte desaparece e o movimento capta a tua atenção. Já vês as crianças que brincam, os alunos de uma escola a gozar o recreio, ou uma familia a ter uma refeição matinal.

Tudo se transforma num cenário de vida. Por esta altura tudo o que vês se movimenta e percebes que a beleza real desta foto: a quantidade de vida que consegue captar. Sem ela não estaria naquele momento sentado ali. O horizonte seria mais um e não teria nada para me sentar e contemplar.

Monday, February 27, 2012

Outros Viajantes IV - Hannah Howes


Mais que tudo é uma amiga que encontrei. As mãos do destino quiseram que partilhassemos o mesmo Rickshaw, e ela acabou por ser a “chave” que me permitiu desbloquear o Rajastão. Dela recebi música, o deserto e Bundi. Mas mais que tudo a possibilidade de conhecer uma pessoa muito especial e com uma alma generosa.

E tudo o que a Hannah é, acaba por ser transmitida pela sua voz. Algo apenas ao alcance de poucos. Quando me deu o seu site, foi um daqueles momentos que ficarão na memória. Aos primeiros acordes de “Strings Attached” um sorriso formou-se. E quando a sua voz começou estava rendido. O album Candy, a qual essa música pertence, foi uma optima aquisição para a banda sonora desta viagem.

Mas a música que me prende ao repeat vezes sem conta – e que vos deixo aqui – é “Candy”. Uma música melódica e forte. E quando estás na India, rodeado dos mais belos sorrisos de crianças, não consegues deixar de concordar com ela.

Espero que gostem da sugestão e visitem o seu site para saber mais. 


Sunday, February 26, 2012

Uma foto


Começou em Mumbai. Com uma promessa de ida a uma pequena cidade perto de Udaipur. Na euforia do momento, não me parecia muito fazer 200 quilometros para tirar uma foto. Sorria-me a ida a um local que não estava no roteiro. Algo que sempre quis fazer nesta viagem.

Em Udaipur, e longe do entusiasmo do momento, já não parecia tão atraente. Só com dois dias livres, teria de fazer uma escolha entre conhecer melhor Udaipur ou ir a Rajsamand. A palavra estava dada, e não ia recuar. Parti contente com a decisão e ansioso por saber o que me esperava. Corrida de rickshaw até ao bus stand. Umas perguntas aqui e ali, e chegava a primeira novidade: estava a comprar um bilhete de bus. Regressava à normalidade da fila do posto de venda, dinheiro para lá e bilhete para cá.

Minutos depois estava a sair da estação num bus com algumas partes lisas entre os riscos dos choques de viação. Um bom prenúncio da estabilidade da viagem. E aqui fazem juz aos avisos. Entre uma travagem mais brusca ou uma ultrapassagem quasi-impossível, a viagem era uma emoção. Para relaxar ao meu lado tinho uma paisagem de encher o olho. Do alto de uma montanha semi-arída, temos uma ampla visão sobre esta região. Aqui o tempo é mais duro, e a vegetação reflete esta mudança. A geografia da região altera a das hortas com que me cruzo. As amplas herdades do sul dão lugar às pequenas hortas do norte. A unificar um verde apenas possível neste país.

Encantado com a viagem, chega a altura de me preocupar com o destino final. Rajsamand é uma paragem em trânsito e por isso tenho de descobrir o momento certo para sair. Sabendo Hindi não deve ser difícil, mas não é o caso. Recorro a um truque que me salvou em situações semelhantes. Os sítios de comércio têm um cartaz de publicidade, e nesse cartaz a morada. Só tens que ter em linha de conta dois pormenores: (a) se o local que estás é pequeno a maioria das placas – senão todas – estão em hindi; (b) por vezes a morada que lês publicita um outro local. Uma simples regra de maioria resolve o problema.

Com isso em mente, comecei a minha pesquisa. E passado um tempo já lia Rajsamand por todo o lado. Afinal o local não era pequeno. E sem grande dificuldade lá estava onde queria. E que local! Foi como encontrar um pequeno paraíso. Esta é uma vila genuinamente indiana. Não encontras nenhum turista. Por ali estão todas as cores, pormenores e caracteristicas que costumas ver espalhados pelos vários locais. Mas tudo ao vivo e mais intenso. Pela rotunda que cheguei, encontro as vacas e os porcos a passear. As bancadas a contornarem a rua com as suas frutas, doces, comidas, etc... No meio, e por entre o trânsito que segue uma lógica própria, encontras as pessoas e os seus coloridos saris. Muitos olham para ti com aquela pergunta: “o que é que este estranho está aqui a fazer?” As crianças, menos dadas a filosofias, apenas sorriem.

Começo a minha pesquisa, e facilmente encontro alguém disposto a ajudar. Diz-me que a escola fica perto, na rua que sai da rotunda. Sigo por esta rua, que continua muito indiana, e quando chega a altura – depois de uns largos metros sem encontrar a escola – pergunto uma vez mais. Respondem-me que é já ali, mas desperto curiosidade suficiente para trocarmos uma breve conversa. Explico-lhes o que fazia, faço e agora vou fazer naquele local. O que eles retribuem com um sorriso e um elogio ao nosso país.

Chego ao meu destino. Um terreno em que uma familia de porcos indianos faz a sua refeição, e um muro limita o espaço. Dirijo-me para o portão e tiro a foto pretendida. Não contente com o resultado, resolvo entrar. Num primeiro momento apenas vejo os alunos que se apressam para a sala. Pouco depois encontro os professores que por ali estavam. Aqui a sala de professores é na rua. Estranham este estranho e eu tento modificar essa situação. Quebrado o gelo inicial sou recebido com uma enorme simpatia. Dizem-me para me sentar, trazem-me chá, e vão à rua comprar um doce para poder acompanhar a bebida.

Vou explicando a minha história e dando-me a conhecer. Percebo que tirar uma foto lá dentro não é simples, mas eles tentam satisfazer o meu pedido. Entretanto vou conhecendo a realidade do espaço onde me encontro. Como o local é antigo, e já fez parte do complexo real. Descubro que tipo de classes por ali existem – é uma escola secundária – e quais são as salas de aulas. Conversa puxa conversa, e um dos professores pergunta-me se lhe dava o prazer de mostrar o local. Nem quero acreditar.

E antes que desse conta, já estava à pendura na sua mota – uma honda hero – a cortar o trânsito indiano. Algo que por si só é um highlight numa viagem a este país. Percebemos melhor como esta dinâmica funciona, e não nos parece tão caótico. Rodeando a pequena montanha, chegamos a um amplo lago. Uma contrução do sec. XIX que permite entregar agua potável a todas povoações circundantes. Um lago criado por uma pequena barragem. Na mesma, três templos e os locais de banhos compõem esta construção. São finamente ornamentados e construidos de mármore branca. Os seus relevos têm aquele abandono típico de templo perdido. O lago e as montanhas que o rodeiam dão-lhe um cenário difícil de igualar.

Seguimos agora para outro local: o Children's Peace Palace da Anuvibha. Uma casa que promove uma cultura de paz e não-violência nas crianças. Funciona em regime de campo de férias, e durante 20 dias as crianças seguem um conjunto de actividades direccionadas a esse fim. Também - e fruto desta organização - médicos especialistas deslocam-se a estas instalações vindos de Mumbai, e durante 3 dias atendem as pessoas desta região. Talvez a única possibilidade de terem acesso a este tipo de cuidados médicos. Percebo a influência que este local pode ter na vida e realidade desta região e sinto-me humilde. O que damos por garantido em nossa casa, aqui é um luxo apenas acessível a alguns ou pelos gestos generosos de algumas organizações e pessoas.

Seguimos agora para o terceiro highlight. O templo que o arquitecto da barragem mandou construir em homenagem ao seu Deus. Fica no local mais alto da região. Apesar de pequeno é belo. O mármore que o compõe foi finamente talhado e decorado, com uma técnica que hoje já não existe. Subindo a escadaria encontramos o antigo e o moderno em conjunto. Apesar de templo, o espaço também é utilizado para a contrução de novos pedaços para um outro em construção. O professor leva-me então ao topo daquele local. E como é belo. De um lado vemos a totalidade do lago e as montanhas que o ladeiam. Do outro Rajsamand, o verde do vale e as pequenos e arredondadas montanhas. O horizonte é uma linha difusa e sentimo-nos pequenos com tal vista.

Após este momento é altura de regressar. Ele leva-me até à paragem de autocarro, e eu não sei como  lhe agradecer. Estou de volta à agitação. E com uma pontualidade, também ela indiana, apanho o meu autocarro. Enquanto volto sinto que tudo tem um sentido. Uma simples foto transformou-se num dia mágico e um atraso permite-me fazer o caminho acompanhado de um belo pôr-de-sol.

Wednesday, February 22, 2012

Ferias de Carnaval

Viva!

Eu sei que o pessoal em Portugal ficou sem Carnaval, mas como tenho um chefe porreiro ele deu-me esta semana de ferias pelo que nao existirao novos artigos. No entanto na proxima semana tudo estara de novo operacional.

Um forte abraco
Stran

Thursday, February 16, 2012

Inesquecível


15 de Janeiro. Não esqueçam esta data. Se estiverem pela India passem-na em Mumbai. É altura do Kite Festival. As pessoas celebram-no com papagaios. E foi essa a minha ultima imagem da cidade. Saí ao pôr de sol, e o céu era composto por milhares de papagaios que lutavam para se manter no ar.

Na memória fica a alegria das pessoas – adultos e crianças – a brincar com os seus papagaios. A rota do bus levava-me pelos slums de Mumbai. Nesta cidade, os prédios, ou as zonas mais turisticas, são pequenas ilhas que contrastam com o resto. Constituidas de casas toscas de tijolo ou de zinco, encontramos tanta variedade como a das pessoas que as constroem. Naqueles telhados metálicos e ondulantes, silhuetas de crianças sobressaiam. Gesticulavam para dominar um papagaio, mas parecia uma bela dança coreagrafada. Ali, entre o dia e a noite, não sobressaiam as condições de vida, mas sim a alegria. Demonstrando que nenhuma condição é superior ao sorriso das pessoas.

O mesmo tipo de sorriso que tinha sentido ao entrar para o bus. Fiquei três horas à espera que chegasse. Não me apetecia muito ver esta cidade. E como estava enganado. Nesse tempo, vi mais que acharia ser possível. Fui adoptado pela simpatia dos donos e trabalhadores das agências de viagem da LBS Marg. Uma extensa avenida na zona do aeroporto. “Lojas” pré-fabricadas são o local de sustento de sonhos e familias. Recebo doces e histórias. Descubro quanto ganha uma pessoa e o que significa a palavra "Jolar" (charlatão). Descubro o “rei” dos "Jolars" e os seus companheiros. Mais que tudo, descubro a enorme simpatia e acolhimento das pessoas. Como têm ambições simples e corações generosos. Aprendo que o imprevísivel é o mote de uma viagem como esta.

Tão imprevísivel como o descobrir um condutor de taxis que conhece outros portugueses e fala uma ou duas palavras da nossa língua. Aquele viagem até à agencia de viagens foi o entrar no mundo do meu condutor. Taxista muçulmano, muito simpatico e divertido. Ensina-me o seu modo de vida e a coesão familiar na cultura muçulmana. Pergunta-me sobre a minha viagem enquanto descreve a cidade e a sua vida. De como o seu negócio não é muito bom em dias como este. Fim de semana em que as pessoas vão para a cidade de carro ou transportes públicos. Diz isto, enquanto não sai da mesma faixa por uns 4 quilometros. Mumbai tem avenidas surpreendemente direitas e sem tráfico nesse Domingo. Tenho a impressão que a cidade fez uma pausa para eu aproveita-la no pouco tempo que tinha.

E como estava calma quando cheguei. Ao sair da estação, descubro uma cidade de grandes prédios góticos e amplas avenidas. Com passeios que são... passeios. Encontro turistas que vagueiam pelas atracções e lojas que vão abrindo lentamente. Descubro que é dia de maratona. Uma das razões da ausência de trânsito. Dá-me oportunidade de explorar ao meu ritmo a Avenida Mahatma Ghandi e os seus prédios. Toda esta zona é um local turistico como em qualquer outra cidade do mundo. Apesar de estar na India, Mumbai pertence ao “país” das grandes cidades. As quais fazem parte locais como Paris ou Nova York. E quando chego por fim ao Gate of India, um grande monumento-portal que saúda quem vem do mar, sei que esta cidade será muito diferente do que imaginava. E o que pensava impossível já acontecera: tinha-me adaptado ao ritmo indiano.

Senti isso quando cheguei à estação. Eram 4 da manhã. Mais ou menos a mesma hora quando aterrei na India pela primeira vez. Nesse dia tudo era confusão e esmagador. Tudo me assustava, como qualquer sitio exigente assusta. Agora já não era assim. O conjunto de pessoas, eram simplesmente isso. A zona parecia organizada e nem senti “aperto” quando saí para fumar e era abordado pelos taxistas. Tudo era simples e fácil. A decisão de esperar pelo nascer do sol foi feito com a maior naturalidade. Numa estação própria para esse descanso. Já nem a ratazana que se passeava pelo átrio me incomodava. Até tive pena dela. Estava aleijada numa perna e lá tentava, coxeando, chegar ao seu destino. Talvez este seja uma das grande lições que já apreendi. A do respeito em vez de repulsa. Por todos os seres vivos, mesmo aqueles que antes tanta confusão me faziam.

Não sei se volto a Mumbai. Foi intenso demais para repetir o local em tão pouco tempo. Mas em viagem tudo pode acontecer. Uma estadia de 3 dias, passar a um vislumbre e esse a uma experiência inesquecível.

Wednesday, February 15, 2012

Le moi errant: O Sorriso


Escrevo este post para ti. Por todos os motivos. A pergunta que em tempos fizeste ainda ecoa na minha mente: será que terei o mesmo sorriso? Ainda não tenho resposta.

Sei que os sorrisos dos outros me mudaram. É impossível ficar indiferente a tantos. Quer sejam o das crianças que brincam com poucas preocupações, quer seja o sorriso amável dos adultos. Como ficar indiferente a quem sorri por te ver chegar ou um enternecido ao partires? Guardas esses momentos para o resto da tua vida. São momentos únicos e que te tocam. Entregam-te um momento de felicidade, e não consegues deixar de te sentir humilde com tamanha oferta.

Não sei se o meu sorriso é diferente. Mas sei como um sorriso de olhos pode mudar uma vida. Num simples momento tudo é diferente. Por isso, não sei se o meu ficará o mesmo. Se puder transmitir um pouco os sorrisos que vejo, então encontrarás um mais brilhante. Um que espero que te contagie. Enquanto não é possível o veres, desejo que, agora que me lês, possas já sorrir um pouco...

Tuesday, February 14, 2012

História de uma foto: Quatro


Por detrás de uma foto está sempre a vida. Neste caso a vida de quatro rapazes. Foi tirada dentro de um autocarro, enquanto saia de Mumbai. Eram 4 rapazes mas via eram quatro vidas que superavam o seu redor. Um bairro de lata, que não tem nenhuma beleza que não seja a das pessoas que o habitam. E nisso torna-se único. Ali não existe distracções.E nesta foto não existe dúvida quem brilha mais. Estes quatro – que pouco mais vi que as suas sombras – davam uma lição de vida. Tudo o que temos oportunidade de ver são sombras de vidas. Passadas em gestos de partilha e felicidade. Imunes, mas integradas, no que os rodeia. Transformando uma simples imagem em algo belo, como apenas a vida o é.


Monday, February 13, 2012

Uma viagem de comboio


Foi com um enorme sorriso que recebi o bilhete. O mesmo que levei comigo para a estação de comboio de Chennai – Chennai Central. E apesar de não ser linda, tem a beleza própria destes locais: a das viagens e movimento. Das despedidas, abraços de chegada e pressa para chegar ao destino. Sinto sempre um nervoso miudinho quando estou para sair. Um nervoso que ia sendo consumido pelo tabaco até ter apenas um cigarro.

Com esta tarefa cumprida, entro no terminal. Descubro a minha linha, e sigo em direção ao comboio. Com o número memorizado, e tempo, a carruagem e o lugar foram encontrados com facilidade. Passo pela 2ª classe e percebo o porquê de não ser aconselhada para turistas. É impressionante como tantas pessoas cabem em tão pouco espaço.

Sigo para a minha carruagem, que é um enorme upgrade... ok não tanto assim. A grande diferença entre um e outro é que aqui tens espaço. E isso faz toda a diferença. Apesar da carruagem levar mais pessoas que os lugares disponíveis, é suficiente arejada para te sentires à vontade. Lá dentro tudo já foi branco e azul. Agora continua a ser mas camuflado pelo escuro do pó e antiguidade. As ventoinhas precisam de ajuda de um pente de cabelo para arrancarem. Um viajante, profissional destas viagens, lá consegue colocar uma a funcionar. Tenho alguns mosquitos por companhia, e penso se não será uma boa escolha fazer um upgrade. A 1ª classe já não me parece um luxo, mas uma necessidade.

Assim que o comboio arranca, entramos noutro mundo. Prepara-se as camas. Os encostos das cadeiras são levantados e agarrados a duas correntes, constituído assim a cama do meio. A de baixo era o local onde estavamos sentados, e mesmo lá em cima fica a do topo. O era a de baixo. Dois amigos indianos pedem-me para subir um nível pois viajam juntos. Algo que acedo sem problemas. Todos preparam as suas camas. Amigos discutem pelo melhor lugar, enquanto outros fazem a cama no chão. Passado uma hora já estamos todos deitados e uma outra sinfonia começa a superar a dos carris. A do ressonar. E o que até poderia ser um contra, alivia-me a consciência. Corre um boato – maldoso por certo – que ressono. Nestas coisas gosto de estar acompanhado. A minha alma repousa mais descansada.

Durante a noite, o maior problema é o frio. Sendo uma carruagem de metálica com pouco isolamento, a temperatura desce a níveis inimaginados para a India. Ao ponto dos meus neurónios não funcionarem mais e esquecerem-se que tinha um saco-cama. Passei parte da noite a tentar encontrar a melhor posição para manter o precioso calor. E jeito daqui, encolhimento dali, lá adormeço. Quando os primeiros raios de Sol tocam a carruagem sinto um enorme alívio. Com um novo dia, vem também uma nova animação.

Ao coro das conversas e ritos matinais, junta-se a voz dos vendedores de comida. Conhecemos a experiência de cada um pela convição e musicalidade com que apregoam os seus produtos. De refeições completas – com o delicioso cheiro a especiarias a acompanhar – a pequenos snacks, fruta, café, chá e até bijutaria, existe tudo. Transformando aquele corredor num bazaar idêntico a tantos outros.

E depois de 14 horas, o vício começa a apertar. Por esta altura já perguntava aos vendedores se vendiam tabaco. Mas todos me confirmavam o que já sabia: nas estações indianas não se vende ou consome tabaco. Com os sentidos mais apurados um conjunto preto e amarelo perto duma pequena estação chama-me a atenção. Da janela conseguia ver os rickshaws parados do outro lado da linha. Vou até à porta para confirmar a minha intuição: por perto estava uma daquelas pequenas barracas indianas, que serviram de inspiração para a mala do sport billy. Pergunto se o comboio ainda demora a arrancar. Recebo a confirmação. Olho para a esquerda, para a direita e desato a correr como a minha vida dependesse disso. Não era tanto com a vida que temia. O meu receio era que algum comboio chegasse e impedisse o meu caminho de volta. Bati um qualquer record de 50 metros obstáculos. E acredito que a velocidade com que disse “tabac, cigarrettes, tabac” era idêntica à dos apregoadores nos buses. Tabaco na mão e volto mais calmo. Não se ouvia nenhum comboio, e o meu ainda estava no mesmo sitio. Quando me veêm de tabaco na mão perguntam-me onde tinha arranjado. Conto-lhes a minha historia. Estranhamente, ninguém seguiu o meu exemplo.

Por esta altura, a carruagem já parece a minha pequena casa indiana. De um lado vista para a cidade. Do outro para o campo. Esqueço todo aquele sentimento de estranheza e vontade de mudança inicial. Quando adormeço, embalado por um belo pôr de sol, sinto que melhor casa era impossível...

Sunday, February 12, 2012

História de um bilhete de comboio...


“A tão ansiada viagem de comboio está quase!” pensei ao reservar o bilhete online. É impossível falar na India, sem imaginar uma viagem destas. O comboio sempre foi o meu transporte favorito. Não sou o único a gostar. Pelo menos, é um sexto da população mundial a partilhar o mesmo gosto neste país. E como rapidamente verifiquei, os bilhetes de comboio estão esgotados e acabamos numa lista de espera.

Optei sempre pelo bus. Era mais barato e flexível. Como não tenho nada planeado, a liberdade de chegar a uma estação de autocarros, entrar num e ser largado no destino final era apelativa demais para ser ignorada. Mas não queria fazer a transicção entre o Sul e o Norte de autocarro. A distância era perfeita para ir de comboio. Fiz a reserva com duas semanas de antecedência. Tinha 25 pessoas à minha frente. Algo que não me preocupava. Quase sempre obtem-se a confirmação nos últimos dias. Por agora a prioridade era visitar uma cidade apaixonante.

E heis que chega o penúltimo dia. Já estava um pouco nervoso. O maior problema era a incerteza. Não poderia marcar o hotel sem ter a confirmação. Com apenas 8 pessoas por desistir, tinha esperança em obter o bilhete. Nessa noite, e sem nada que pudesse fazer, fui beber um café com alguns amigos de couchsurfing. Decidi aproveitar o momento sem preocupações.

Começo com um sobressalto inicial. Dizem-me que já deveria ter marcado a estadia em Mumbai. Mas, conversa puxa conversa, e já tinha local para dormir por lá, ou, caso não partisse no dia seguinte, também em Chennai. Antes de ir para o hotel, verifico uma última vez o número na lista de espera. Já só faltam cinco. Acredito que vou conseguir.

Chega o dia do veredito. Esperava pela confirmação do bilhete. A listagem final de passageiros ficaria pronta quatro horas antes do arranque do comboio ao meio-dia.

9h00 - o meu estatuto não muda. Ainda tenho cinco pessoas à minha frente. Pior, a listagem ainda não está pronta.
9H30 - o meu estatuto muda para 2. O pior que me podia acontecer. Fico encurralado entre perder o valor do bilhete ou ir a correr para a estação de comboio de forma a não perder o comboio.
9H55 - nada muda. Por esta altura tento encontrar alternativas. No dia anterior soube que existem bilhetes – laklal – de última hora. Uma vez comprados ficam confirmados. O site está com problemas e não consigo inscrever-me para comprar o Laklal ticket.
10H00 - uma nova actualização diz-me que a listagem está a ser preparada. Continuo em número 2. Tudo se decide nestes minutos.
10h10 – o veredicto chega... no ticket for me.

Altura de procurar alternativas. O site da companhia de comboios já está operacional para comprar o Laklal. Formulários preenchidos, comboio encontrado e... Descubro que também têm lista de espera. Não queria um encore, por isso procuro à maneira antiga: através de um agente. O cybercafe onde estava vendia bilhetes de comboio. A comissão que pagaria já não parecia tão cara. No meio da conversa – e com a sorte de uma falha de energia – descubro que o agente faz a compra do bilhete online. E esse era um caminho que já conhecia o desfecho. Mas como estava na India, deixo a possibilidade em aberto. Tento uma ultima alternativa antes que a eletricidade retorne: comprar um bilhete na quota de estrangeiro.

Para isso tinha de ir à estação, e não sabia com o que contar. O Lonely Planet dizia que era eficiente. Mas eu estava na India, e essa expressão tem uma latitude enorme aqui. Depois de encontrar um rickshaw, perco uns minutos a negociar o preço da corrida. Algo que só Deus, Allah ou Ganesha sabem porquê. O que no dia anterior - com todo o tempo do mundo - aceitei sem grande hesitações, hoje era impossível de pagar. Acabou por compensar, pois consegui metade do preço mas com o triplo dos passageiros.

A estação é enorme e degradada. Como eu esperava. Mas tem um feeling que já tinha esquecido. O das viagens. Recuperava a paixão dos comboios, e por esta altura sabia que, custasse o que custasse, a viagem seria de comboio. Uma simples pergunta e recebo a indicação desejada. O local parece uma repartição de finanças semi-clandestina. Nova indicação e estava na sala desejada. Daqui até ter o bilhete na mão – e um sorriso no rosto – foram cinco minutos indianos. Quando saí daquela estação, o mundo deixou de ser o rodopio. Voltava à tranquilidade da minha viagem.

Na realidade nunca a tinha abandonado. Estas preocupações não são preocupações enquanto tiveres possibilidades em aberto. E essas, são tão grandes como a tua imaginação e sorte. E nesta sexta feira 13, ela voltava a sorrir para mim. Entregue pelas mãos de Divya.

Thursday, February 9, 2012

Um Puzzle Indiano


Termino uma etapa da viagem. Passei pelos altos e baixos, pelas alegrias e tristezas, tão próprias da primeira fase. Descobri-me e redescobri-me. Apenas para me voltar a perder. E esta India teve um papel decisivo. Seguindo um cliché, ela não te deixa indiferente. E se a maioria pensa no Norte quando diz isto, posso confirmar que no Sul é o mesmo. Revisito os locais por onde passei, estado a estado. É estranho fazê-lo dessa forma. É tão verdade afirmar que cada estado é diferente, como dizer que é um todo homogéneo. Agora que parto para o Norte, é isto que levo. Um local impossível. Um sitio em que os extremos coexistem, sem nunca o serem.

Goa

É o Estado mais diferente por onde passei. E também o mais português. Esta mistura explosiva de India com Portugal, transformou Goa num sítio de direito próprio. Uma realidade em mudança. Quer pela aculturação indiana - mais real mas menos sentido - quer pela aculturação da onda hippie - mais visível mas menos duradoura. A realidade é que Goa continua a fazer hoje o que fez no passado. Apodera-se da cultura, transforma os individuos, e cria os seus próprios filhos. Hoje os portugueses são tão filhos de Goa, como é a cultura trance. E não existem ilusões, estamos na India. Não aquela que te esmaga. Uma que te convida a estar e de onde tens dificuldade em sair.



Karnakata

Dá-te sensações contrastantes. Do encanto mágico de Hampi à realidade tecnológica de Bengalore, este estado oferece-te tudo. E não gozei as praias - que são um forte concorrente às de Goa. Terei que explorar mais no futuro para o conseguir definir. Acabou por ser o Estado que me abriu o espirito para deixar a India entrar. Aqui percebes melhor de como é feita esta realidade.



Kerala

É a princesinha do Sul. Um pequeno estado, mas um que te rouba muitas emoções. Abre qualquer guia que fale do Sul da India, e ele dir-te-á para ires a Kerala. Não tinha entendido porquê, até ficar siderado pelas suas paisagens e gentes. São simplesmente magníficas. Numa curta distância vais de um paraíso aquático para um sonho montanhoso. A acompanhar, uma cultura que te cativa e uma simpatia que te prende. Aqui aprendes a deixar-te ir. Aprendes que tudo tem uma solução, mesmo que não seja aquela que tinhas previsto.

Tamil Nadu

Uma grande planicie, com picos de pessoas. Aqui o mundo é plano. Sempre o foi, e sempre o será. Umas montanhas aparecem no cenário para te recordar que também existem. A espiritualidade entra-te mesmo sem ser convidada. E tu, como já aprendeste por agora, deixas-te ir. Tudo muda aqui. Tens muito mais daquela India que imaginaste mas não encontras com tanta intensidade nos outros Estados. A terminar uma cidade que não tendo nenhuma atracção faz da sua vida o seu maior cartão de visita.

Cada um destes estados entrega-te um sentimento diferente. Quase parecem mundos diferentes. De Goa trago a gentileza, de Karanakata a amabilidade, de Kerala a simpatia e de Tamil Nadu a espiritualidade. Qualquer um destes estados ganha o prémio de melhor estado do Sul – algo que os seus habitantes certamente concordarão – mas todos fazem sentido em conjunto. Peças de um puzzle que adoras completar.

Wednesday, February 8, 2012

Le moi errant: O Cansaço


A determinada altura começas a sentir um cansaço. Não é físico nem mental. Não o consegues definir e ficas preocupado. Olhas dentro de ti à procura da resposta. Aos poucos, esse cansaço modifica-te a viagem. Já não tens aquele entusiasmo inicial. As ruas já não são tão belas. O templo é apenas mais um. Acabas por esquecer o quão especial é o que estás a fazer.

O meu, apareceu no final do segundo mês de viagem. Chegou de mansinho e embrulhado noutros sentimentos. Primeiro foram as saudades de casa na época festiva. Depois o cansaço fisíco de estar tanto tempo em viagem sem conforto. Até que sobrou apenas o cansaço sem motivo aparente.

Pensei que tinha perdido a minha capacidade de admirar o mundo. De encontrar beleza nos pequenos detalhes. Interroguei-me se a mudança era pelo melhor. Foi um momento dificil da viagem. Um momento que uma amiga de Hampi – que estupidamente esqueci-me do nome e que espero que esteja a ler neste momento – me tinha avisado durante uma conversa que demorou uma travessia de rio.

É uma fase assustadora, mas depois... depois, sem eu conseguir explicar, heis que estou numa cidade, a admirar tudo como acontecia no início. As cores recuperam a sua vida, os detalhes são mais sentidos e os sorrisos ocupam os rostos das pessoas em teu redor. Voltas à viagem sem perceber. Só sabes que aconteceu, assim como sabes que o cansaço ficou finalmente para trás...

Tuesday, February 7, 2012

História de uma foto: Um momento




As fotos de pessoas são sempre tiradas de longe. Gosto de captar o momento sem interferir. Por isso são surpreendentes para mim. Esta não foi excepção. Estava a caminhar na Salai Rd – uma rua que Chennai à sua praia – numa zona pouco atraente. A rua era de um castanho asfáltico indiano. Uns muros escuros compunham o resto do cenário. E de repente, dois pedaços de cor encheram os meus olhos. Estavam numa pequena e vital tarefa – arranjar água. Existia uma simplicidade bela nestas mulheres. Todo o cenário se altera. A escuridão dos elementos parecem agora ser colocados para as fazer sobressair.

Estando do outro lado da rua, e a uns bons metros de distância, tirar uma foto foi uma aventura. Tens uma fracção de segundos até que um carro, ou uma pessoa, te tape a fotografia. A solução, como sempre, é tirar muitas. Mas o que vês não fica parado no tempo. Ou desaparece, ou reparam no teu acto e passam a modelos. Quando tirei esta foto, os meus olhos estavam no trânsito, à procura do momento certo para carregar no botão. Quando o fiz, e olhei para ecrã, nem queria acreditar. A minha imagem inicial agora não existia e um outro momento tinha sido captado.

Monday, February 6, 2012

Outros viajantes III – Dotan Malach


O cenário é composto por belas paisagens e extraordinários monumentos. Mas a viagem traz-te as pessoas. E neste caso tenho tido a sorte e o privilégio de conhecer muitas extraordinárias. Uma prova de que este mundo é feito por boas pessoas. Dotan é mais um exemplo. Actor e músico israelita, cruzámo-nos em Munnar. E é impossível não ficar apaixonado pela sua simpatia e humor.

Mais que eu, acho que Dotan descreve-se melhor na sua página do Myspace: “‏Was born in a circus in Belgrade to a mother that performed as a trapeze girl and a father that trained the lions. was touring with them all around the world until he was 16.lives now in Tel aviv, building his own musical circus, taking care of elephants in zoological gardens in jurusalem, performing everywhere , lives in green and beautiful van and taking out his first album soon”

Quanto à música, acho que o melhor é mesmo ouvirem. Para isso deixo aqui um clip. E apesar de não perceber o que diz, a música transmite um good vibe que tanto gosto. Para mim foi um privilégio ter partilhado um dia na sua companhia e espero reencontra-lo. Quem sabe para beber uma cerveja no bairro alto depois de um concerto em Lisboa.


A Map for Saturday


Foi um presente oferecido por dois amigos. Viram este documentário e decidiram partilha-lo. Com uma ligação lenta - e uma cidade que insiste em ter cortes de energia - o simples download foi uma tarefa “radical”. Estava num cibercafé que não tem gerador mas com ligação rápida o suficiente para fazer o download.

Tinha chegado a Chennai e estava um pouco eufórico. Voltava a recuperar a energia que nos últimos tempos me faltava. Eles pensaram em mim ao ver este filme e eu estava curioso para saber o porquê. Download feito, jantar no estomâgo e estava no pequeno, mas limpo, quarto de hotel. E quando o filme começou, só me faltavam as pipocas para me sentir num cinema.

E que filme. O documentário chama-se A Map for Saturday. E é sobre uma pessoa que tem um emprego estável, que lhe permite uma boa vida, com um bom apartamento e decide...



...sim adivinharam, largar tudo e ir dar uma volta ao mundo. Uma história que por esta altura já vos é familiar.

Este documentário retrata bem o que significa uma viagem como esta. Eu ainda estou nos primeiros 20 minutos da minha volta, mas já criei uma empatia instantânea com o autor. Algo que acontece também na estrada. Assim que conheces um “fellow traveller” existe uma ligação difícil de explicar.

Se querem perceber um pouco mais o que é isto de dar voltas ao mundo, sugiro que vejam este filme. E quem sabe, também fiquem com o bichinho das viagens. Estranhamente esse objectivo também coincide entre o autor do documentário e mim. Também gostava, com as minhas palavras e fotos, não só levar-vos comigo, como contaminar-vos com a vontade de partir e ver este belo mundo. Acreditem, não é assim tão dificil e é algo que guardarão para o resto das vossas vidas.

Sunday, February 5, 2012

Uma cidade simpática


Chennai vale por si. Não sendo um highlitght cheguei sem expetativas. A melhor forma de encontrar uma cidade. O ritmo indiano deste local captou logo a minha atenção. Foi paixão à primeira vista, sem saber muito bem porquê. Olhava à minha volta e não existia nada de atraente. Muito lixo, e o cheiro a acompanhar. Prédios degradados, ruas esburacadas, e uma sinfonia de buzinas. Mas era isso mesmo que me apaixonava. Chennai era real. Não tentava ser mais que uma cidade. Gosto quando isso acontece. Quando as pessoas vivem na sua cidade. Por algum motivo sem explicação, umas são mais reais que outras.

Talvez seja por não ter nenhuma grande atracção. Mas não deixa de ser bela. Com sitios que se enquadrariam num belo postal. O complexo do museu governamental é um exemplo. Situado numa grande avenida – na realidade a avenida passa por cima da antiga estrada – este é um sitio encarnadamente belo. Os edificio são bonitos, e o espaço envolvente permite-te relaxar um bocado. Lá dentro as exposições valem o dinheiro que dás. Nada que te faça cair o queixo, mas gostas das estátuas, das histórias que aprendes, dos ossos, dos animais embalsamados, selos e quadros que tens oportunidade de ver. Se o museu não for suficiente, em pouco tempo estás na praia. Um quasi-contraste com o corre-corre de Chennai. O amplo lençol de areia nivela tudo e desafoga o teu olhar. Estás numa praia de uma grande cidade. Mas, mesmo assim. consegues ter a tranquilidade que só o mar te pode dar.

E embora possam dar boas fotografias e emoções, não são o maior highlight de Chennai. Esse é simplesmente andar pela cidade – algo que tentava explicar aos condutores de rickshaw enquanto recusava as suas generosas ofertas. Em Triplicane – zona do meu hotel – tinha a sorte de poder escolher amplas avenidas, ruas movimentadas ou laterais esguias. Decido pelas ruas movimentadas.

Os prédios variam entre construção colonial, casas tamilianas ou prédios modernos. Mas é perto dos passeios que o movimento atrai a minha atenção. Pouco utilizados pelos peões, servem para beber um chá, colocar a mercadoria, ou ficar sentado a fazer o seu trabalho. Depois destes, estão as bancadas de rua – com frutas, roupas, calçado, etc... - a competir com o estacionamento das inúmeras motas e rickshaws que deixam ou aguardam clientes. Logo a seguir, vamos nós – os peões – lutando por espaço com o trânsito que circula no meio da rua. E é nesta confusão de detalhes e estímulos, de cores e hábitos, que me sinto feliz. Mais do que um grande monumento, aprecio a mãe que cata a sua filha ou a mulher multicolorida a tirar água de uma fonte. Tudo compete pela tua atenção ao ritmo de uma grande cidade indiana.

Este seria o maior highlight, se não tivesse conhecido as pessoas. E são estas, em ultima análise, que fazem o local. Tornam-no belo. Logo no primeiro dia sorriram para mim. E continuaram a fazê-lo nos outros. Impossível terminar melhor do que a tomar um café com duas pessoas desta cidade. E por entre sorriso e conversas, transparecia uma enorme simpatia que diria Chennainiana.

Thursday, February 2, 2012

Uma viagem... espiritual


Este é o post improvável. Nunca fui dado a muita espiritualidade. Como em outras coisas, nesta viagem tenho descoberto uma nova dimensão em mim. Não que tenha abraçado uma religião. Por aí tudo se mantem igual. Mas a minha experiência mudou-me tanto que trouxe algo que não sei definir a não ser com palavra espiritualidade. Tamil Nadu foi a parte em que tal se concretizou. Uma deliciosa coincidência. Tinha escolhido visitar este estado por causa dos seus templos e a espiritualidade é algo que se sente um pouco por todo lado.

Madurai

É o coração da cidade. Domina a paisagem e dá-lhe um toque mágico. Tem uma mistura saudável de calma e agitação. Apesar do hutle-hustle indiano não te sentes oprimido pelas solicitações. Quando chegas ao centro, dois mundos diferentes co-existem. De um lado a confusão do comércio e cabos de eletricidade. Do outro, a calma do templo. A rua, que separa estes dois lados, é estranhamente limpa. O templo é belo. As torres – portas de entrada para o complexo – seguem os pontos cardeais e são ricamente decoradas e coloridas. Perdes-te entre admirar esta beleza e a do movimento das pessoas.

Mas Madurai foi também o sitio onde domestiquei a minha mente. Depois de algum tempo, decidi que era altura de me organizar e começar a escrever com mais método. Foi difícil. Tinha muito com que me distrair. Lá fora uma cidade que se movimentava e chamava por mim. Cá dentro o conforto de um bom hotel. A luta foi grande, mas sempre que subia um dos prédios para tomar a refeição acabava por sorrir. Olhava para o complexo e tinha a certeza de que estava no caminho certo.

Trichy

A viagem continuou por outra cidade. Por esta altura o meu corpo já se ia habituando às peripécias dos buses indianos. Nem a confusão das estações já faziam muita mossa. No entanto, Trichy tinha para me dar bem mais do que estava habituado. Pela primeira vez senti o cheiro indiano. Já tinha tido umas pistas aqui e ali, mas nada tão intenso. Fruto de uma combinação terrível entre água, calor e lixo. Mas isto é algo que tens de preparar o teu corpo se queres aproveitar o que a India tem para te oferecer. A India nunca foi fácil. Mas sempre interessante. É um sitio que combina realidades antagónicas ficando à mercê da tua escolha. A minha foi ultrapassar estes obstáculos.

Em boa hora o fiz. Trichy tem sitios lindos para contemplares. A zona do forte é uma zona comercial por excelência. Perdes-te sem problemas pois encontras sempre algo que te rouba um sorriso. No meu caso, e depois de ter tentado sem sucesso chegar ao topo do forte, acabei por entrar num templo hindu. Por dentro a luz quase não entrava e as poucas pessoas presentes, meditavam. Deixei-me passear, entrando num mundo novo. Um momento que acabou quando fui “descoberto” por um dos elementos do templo. Acompanhou-me com a sua simpatia até à porta de saída. O momento estava feito e decidi ir ao templo que marca esta cidade.

Rio atravessado e estou perante o primeiro das torres de entrada do templo. Parecem portais para outros mundos. No primeiro, a rua segue cheia de comerciantes e pedintes. Consoante nos aproximamos, a confusão vai ficando para trás e a devoção vai entrando. Acaba por ser um bom templo para estares. Tem diversos locais de devoção em que vês o hinduísmo ao vivo. Gosto dos diferentes trajes, ou de como as pessoas se movimentam com os seus saris coloridos, dando uma vida única a este espaço. Depois de muitas hesitações, acabo por decidir não entrar no centro do complexo. Tenho percebido que os sítios mais sagrados são espaços para a devoção e eu não sou devoto. Poderia matar a minha curiosidade, mas seria apenas isso. Prefiro substituí-la pelo respeito a quem utiliza esse espaço para o fim a que é destinado.

Thiruvannamalai

Cheguei em dia de Festival. Era lua cheia, e por esta altura milhares de fiéis acorrem a esta cidade. O culto é a Shiva na sua forma de fogo. E as chamas espalham-se por cada altar da cidade e em frente às quatro entradas do templo. Surpreende-me a quantidade de pessoas que estão cá. Nunca pensei que uma pequena cidade pudesse conter tantos devotos. À volta do templo, uma fila que deixaria a do museu do Vaticano com vergonha. No rosto das pessoas a imagem de uma longa espera.

Eu passeio-me pelo lado de fora do templo, entre a fila de um lado e as barracas de comércio do outro. Muitas são de comida para satisfazerem os fiéis. A cada fogo, um grupo de pessoas junta-se para as suas orações, unindo as mãos por cima da cabeça.

Já é de noite, e enquanto desço a rua para regressar ao hotel, reparo na vedeta da noite. Depois de muitas tentativas lá consigo captar pela primeira vez a lua cheia. Digo primeira, pois nunca a tinha conseguido tão grande e nítida. Uma mulher, curiosa com o que estava a fazer, aborda-me e atesta que a fotografia saiu bem. Apresenta-me a sua filha, que fala comigo num inglês perfeito e sorriso demolidor - como só as crianças sabem ter (e as indianas em especial).

Acabo por me juntar à fila que seguia pela cidade. Uma corrente imparável de pessoas. Não sabia o caminho, nem precisava. Aqui e ali, as vacas eram tocadas e apreciadas. Não sei muito bem se a abençoar ou a serem abençoadas. Presumo um pouco de ambas. O seu leite era agora entregue aos peregrinos à porta de mais um templo, para que pudessem fazer uma benção.

Sou vencido pelo cansaço e retorno a casa. Noite dormida e no dia seguinte subi a montanha que é o centro desta cidade. Um antigo vulcão, onde Shiva apareceu e deu origem a este culto e templo. O caminho é ingreme, e sob este sol, duro. Faço-o ao meu ritmo até encontrar uma pedra onde repousar. Tenho a sombra do espinheiro para me fazer companhia e paro uns segundos para contemplar a paisagem. No centro o templo, geométrico e perfeito. À sua volta o caos da cidade indiana, com as suas casas cúbicas – de um cubismo abstrato e picassiano – e ruas pequenas. Deixo-me estar em contemplação. Reparo que um sorriso, diferente daquele que me habituei, se forma. Um sorriso que vinha da calma que o meu espírito atingia.

Tamil Nadu, foi uma experiência. Encontro aqui a diversidade e unidade, própria da India. Os cheiros que nos repulsam e os outros que nos atraem. Os templos tão iguais e diferentes entre si. É esta combinação impossível mas real que guardo desta visita. Uma combinação que foi lentamente entrando em mim quando cheguei à India, e que se materializou neste Estado. Numa caminhada que mais que tudo, foi espiritual.

Wednesday, February 1, 2012

Le moi errant: Medo


Somos uma sociedade de medo. Nunca me tinha apercebido, até estar em viagem. É acarinhado e educado um pouco por todo lado. Medo de tudo. Condiciona-nos o subconsciente. Molda-nos o comportamento. Decide por nós mas dá-nos a ilusão de que a escolha é nossa. Um medo intocável e profundo. Nem tem nome. Não sabemos do que temos medo, apenas temos.

Eu não sou diferente. O medo foi o sentimento mais comum até agora. Começou no avião para Istanbul. Mal ouvi que estavamos a chegar, tive um ataque de pânico. Daqueles que te levam ao desmaio. Tudo caiu naquele momento. O medo de cometer um erro, do desconhecido e de estar sozinho. O medo de não conseguir viajar. E depois deste aparecem outros. O medo de não ter meio de sair, de não ter hotel, de apanhar um grande momento e não ter ninguém com quem partilhar. Até o mais ridiculo de todos, o medo do que os outros vão pensar de ti, quando nem sequer tens outros à tua volta.

E quando chegas a este ponto, apercebes-te de como está enraizado em ti. Como as tuas decisões não devem ser baseadas nele mas nas outras coisas. A viagem é uma conquista do medo. Começa logo em casa quando decides ir dar uma volta ao mundo. Mas aí, tudo é muito fácil e romântico. A vida não o é (ou, como eu acredito, no o é apenas). Aqui és forçado a enfrenta-lo. Não tens fuga, e sabes que o caminho que tomares acaba por te definir. Decides abraçar o imprevisto ou escolher a segurança. Liderar o teu caminho ou seguir o dos outros.

E aos poucos vais deixando o medo para trás. Não tens motivos para o teres. Tu não encontras sitios exóticos e incompreensíveis. Descobres que o teu mundo é muito maior que imaginavas. A viagem é como o conhecimento. Tu nunca o aumentas, mas sim a ignorância. E na viagem, quando deixas passar a fase do medo, descobres que quanto mais caminhas, mais mundo tens para o fazer.