Sunday, February 26, 2012

Uma foto


Começou em Mumbai. Com uma promessa de ida a uma pequena cidade perto de Udaipur. Na euforia do momento, não me parecia muito fazer 200 quilometros para tirar uma foto. Sorria-me a ida a um local que não estava no roteiro. Algo que sempre quis fazer nesta viagem.

Em Udaipur, e longe do entusiasmo do momento, já não parecia tão atraente. Só com dois dias livres, teria de fazer uma escolha entre conhecer melhor Udaipur ou ir a Rajsamand. A palavra estava dada, e não ia recuar. Parti contente com a decisão e ansioso por saber o que me esperava. Corrida de rickshaw até ao bus stand. Umas perguntas aqui e ali, e chegava a primeira novidade: estava a comprar um bilhete de bus. Regressava à normalidade da fila do posto de venda, dinheiro para lá e bilhete para cá.

Minutos depois estava a sair da estação num bus com algumas partes lisas entre os riscos dos choques de viação. Um bom prenúncio da estabilidade da viagem. E aqui fazem juz aos avisos. Entre uma travagem mais brusca ou uma ultrapassagem quasi-impossível, a viagem era uma emoção. Para relaxar ao meu lado tinho uma paisagem de encher o olho. Do alto de uma montanha semi-arída, temos uma ampla visão sobre esta região. Aqui o tempo é mais duro, e a vegetação reflete esta mudança. A geografia da região altera a das hortas com que me cruzo. As amplas herdades do sul dão lugar às pequenas hortas do norte. A unificar um verde apenas possível neste país.

Encantado com a viagem, chega a altura de me preocupar com o destino final. Rajsamand é uma paragem em trânsito e por isso tenho de descobrir o momento certo para sair. Sabendo Hindi não deve ser difícil, mas não é o caso. Recorro a um truque que me salvou em situações semelhantes. Os sítios de comércio têm um cartaz de publicidade, e nesse cartaz a morada. Só tens que ter em linha de conta dois pormenores: (a) se o local que estás é pequeno a maioria das placas – senão todas – estão em hindi; (b) por vezes a morada que lês publicita um outro local. Uma simples regra de maioria resolve o problema.

Com isso em mente, comecei a minha pesquisa. E passado um tempo já lia Rajsamand por todo o lado. Afinal o local não era pequeno. E sem grande dificuldade lá estava onde queria. E que local! Foi como encontrar um pequeno paraíso. Esta é uma vila genuinamente indiana. Não encontras nenhum turista. Por ali estão todas as cores, pormenores e caracteristicas que costumas ver espalhados pelos vários locais. Mas tudo ao vivo e mais intenso. Pela rotunda que cheguei, encontro as vacas e os porcos a passear. As bancadas a contornarem a rua com as suas frutas, doces, comidas, etc... No meio, e por entre o trânsito que segue uma lógica própria, encontras as pessoas e os seus coloridos saris. Muitos olham para ti com aquela pergunta: “o que é que este estranho está aqui a fazer?” As crianças, menos dadas a filosofias, apenas sorriem.

Começo a minha pesquisa, e facilmente encontro alguém disposto a ajudar. Diz-me que a escola fica perto, na rua que sai da rotunda. Sigo por esta rua, que continua muito indiana, e quando chega a altura – depois de uns largos metros sem encontrar a escola – pergunto uma vez mais. Respondem-me que é já ali, mas desperto curiosidade suficiente para trocarmos uma breve conversa. Explico-lhes o que fazia, faço e agora vou fazer naquele local. O que eles retribuem com um sorriso e um elogio ao nosso país.

Chego ao meu destino. Um terreno em que uma familia de porcos indianos faz a sua refeição, e um muro limita o espaço. Dirijo-me para o portão e tiro a foto pretendida. Não contente com o resultado, resolvo entrar. Num primeiro momento apenas vejo os alunos que se apressam para a sala. Pouco depois encontro os professores que por ali estavam. Aqui a sala de professores é na rua. Estranham este estranho e eu tento modificar essa situação. Quebrado o gelo inicial sou recebido com uma enorme simpatia. Dizem-me para me sentar, trazem-me chá, e vão à rua comprar um doce para poder acompanhar a bebida.

Vou explicando a minha história e dando-me a conhecer. Percebo que tirar uma foto lá dentro não é simples, mas eles tentam satisfazer o meu pedido. Entretanto vou conhecendo a realidade do espaço onde me encontro. Como o local é antigo, e já fez parte do complexo real. Descubro que tipo de classes por ali existem – é uma escola secundária – e quais são as salas de aulas. Conversa puxa conversa, e um dos professores pergunta-me se lhe dava o prazer de mostrar o local. Nem quero acreditar.

E antes que desse conta, já estava à pendura na sua mota – uma honda hero – a cortar o trânsito indiano. Algo que por si só é um highlight numa viagem a este país. Percebemos melhor como esta dinâmica funciona, e não nos parece tão caótico. Rodeando a pequena montanha, chegamos a um amplo lago. Uma contrução do sec. XIX que permite entregar agua potável a todas povoações circundantes. Um lago criado por uma pequena barragem. Na mesma, três templos e os locais de banhos compõem esta construção. São finamente ornamentados e construidos de mármore branca. Os seus relevos têm aquele abandono típico de templo perdido. O lago e as montanhas que o rodeiam dão-lhe um cenário difícil de igualar.

Seguimos agora para outro local: o Children's Peace Palace da Anuvibha. Uma casa que promove uma cultura de paz e não-violência nas crianças. Funciona em regime de campo de férias, e durante 20 dias as crianças seguem um conjunto de actividades direccionadas a esse fim. Também - e fruto desta organização - médicos especialistas deslocam-se a estas instalações vindos de Mumbai, e durante 3 dias atendem as pessoas desta região. Talvez a única possibilidade de terem acesso a este tipo de cuidados médicos. Percebo a influência que este local pode ter na vida e realidade desta região e sinto-me humilde. O que damos por garantido em nossa casa, aqui é um luxo apenas acessível a alguns ou pelos gestos generosos de algumas organizações e pessoas.

Seguimos agora para o terceiro highlight. O templo que o arquitecto da barragem mandou construir em homenagem ao seu Deus. Fica no local mais alto da região. Apesar de pequeno é belo. O mármore que o compõe foi finamente talhado e decorado, com uma técnica que hoje já não existe. Subindo a escadaria encontramos o antigo e o moderno em conjunto. Apesar de templo, o espaço também é utilizado para a contrução de novos pedaços para um outro em construção. O professor leva-me então ao topo daquele local. E como é belo. De um lado vemos a totalidade do lago e as montanhas que o ladeiam. Do outro Rajsamand, o verde do vale e as pequenos e arredondadas montanhas. O horizonte é uma linha difusa e sentimo-nos pequenos com tal vista.

Após este momento é altura de regressar. Ele leva-me até à paragem de autocarro, e eu não sei como  lhe agradecer. Estou de volta à agitação. E com uma pontualidade, também ela indiana, apanho o meu autocarro. Enquanto volto sinto que tudo tem um sentido. Uma simples foto transformou-se num dia mágico e um atraso permite-me fazer o caminho acompanhado de um belo pôr-de-sol.

2 comments:

  1. És escritor, Stran Ger! Dúvidas? Nenhumas. Adoro ler o que escreves e lá andei na moto a cortar o trânsito indiano. A escola, os professores, a simpatia deles por ti, quando lhes dizes quem és e o que andas a fazer. Obrigada por poder visitar a Índia sem ter que sofrer as incomodidades por que tu tens passado. Continua...enquanto o livro não é editado. MJosé Dellinger :)

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  2. Epa muito muito obrigado... estava com um pouco de receio pelos proximos artigos pois sentia que podia fazer melhor, embora não tivesse tempo para tal. Nem imaginas a alegria que me deste quando li as tuas palavras. Quanto às duvidas, mesmo que as tivesse acho que já tinham ido embora... embora continuo a achar que tenho um longo caminho até ter uma escrita que me satisfaça totalmente. Beijinho muito grande e muito obrigado! Stran

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