Sunday, December 4, 2011

Por debaixo do véu


Faz 32 anos que o Irão foi coberto pelo véu islâmico. Desde então tornou-se mais distante. Hoje pouco sabemos da realidade deste povo milenar. É nos alimentado uma imagem de religiosidade radical, um estado ditatorial e de um povo extremista. Um local fechado e desconfiado dos ocidentais. Não era essa a imagem que me tinham oferecido por quem já o visitou. Supremo curioso como sou, tive de descobrir o que se escondia por baixo do véu da minha ignorância.

Tehran

É barulhenta, escura e poluída. O rugido das suas motas dominam as ruas. Andam por todo o lado – inclusive pelos passeios – e atravessar uma passadeira é uma aventura imprópria para cardíacos. Mas esta cidade tem uma vibração que no mínimo não te deixa indiferente. Capital política, sente-se essa carga por aqui. Talvez num nível inconsciente. O melhor exemplo são os véus. Encontras um para cada personalidade. Apesar da obrigatoriedade, esta é desafiada por um véu que cobre apenas o fim do cabelo. Ou então é confirmado pelo tradicional véu, no qual nem uma ponta de cabelo vês. Uma dualidade muito presente por aqui.

Tive a sorte de conhecer um pouco mais da sua vida. Presente oferecido pela enorme simpatia de Mahdi. Compreendi que o “pitoresco” – trânsito – torna-se um inferno para quem vive cá. Pude ser um “revolucionário” e escrevi num dos inúmeros sites que este regime censura – o facebook. E terminei uma noite com um petisco (beterraba em calda doce) que se vê à venda um pouco por toda a cidade. Descubri também que a Europa é uma verdadeira fortaleza. Mesmo que seja apenas em turismo, tornou-se uma tarefa quase impossível arranjar visto se nasceste na coordenada errada deste planeta.

Em termos visuais não é uma cidade que enche os olhos. Entre o degradado e o composto, encontramos de tudo. Um “tudo” que vem embrulhado numa névoa de poluição e uniformiza a cidade. Um tom castanho acizentado apenas cortado pelos algo-coloridos placares das lojas. Só que esta cidade “esconde” algo muito especial. Apanha o metro e sai a norte. Tenho a certeza que ficarás com a boca aberta. A vista das montanhas Alborz é algo único. Talvez o melhor postal que Tehran pode oferecer. São autênticos gigantes de rocha e neve que vigiam esta cidade.

Mas Tehran tem mais para oferecer. A Praça Khomeini é o centro do movimento caótico e lojas de rua. Da mesma saiem importantes avenidas (como a Ferdosi, com as suas casas de câmbio e montras cheias de dólares). No meio, um placard do Iman deixa-me surpreendido com a semelhança entre ele e o Sean Connery. Devem confirmar isso com os vossos olhos. Muito especial para mim, foi ver o graffitti da estátua da liberdade com o rosto de uma caveira. Imagem icónica do anti-americanismo. Uma sensação estranha podê-la ver ao vivo, quase de tom agri-doce. Os mini-aquedutos que separam as estradas dos passeios são outro dos pequenos pormenores que nos é oferecido. Antigos canais que transportavam a água potável, são hoje locais por onde as chuvas pluviais correm. Com mais de 30 centimetros, rapidamente te habituas a ter cuidado com os mesmos. Se não te chamarem à atenção num primeiro momento, estou certo que ao primeiro susto de queda nunca mais te esquecerás.

Tehran é uma óptima introdução a este país. O sítio perfeito para começar a levantar o véu que o encobre. Para terminar, nada melhor que fumar shisha com amigos. O local com aspecto semi-clandestino, fez-me temer o que existiria por detrás da porta. Lá dentro um espaço pouco iluminado, preenchido por sofás cobertos de tapeçaria persa e umas horas de conversa.

Shiraz

Desconfio que você queira ir para Persepolis...” diz-me um homem de tez morena e ar jovial. “será um adivinho?!” penso num primeiro instante. No dia anterior tinha deixado um periquito ditar o que Hafez tinha previsto para o meu destino. Ele é um dos poetas mais celebrados pelo Irão. Toda a casa deve ter uma cópia de Corão e de Hafez. E, tal como o Lonely Planet refere, desconfio que será mais fácil encontrar uma cópia da obra de Hafez. Existe o hábito de pedir um desejo, abrir o seu livro ao acaso e ver o que Hafez nos diz. À porta da sua campa, algumas pessoas têm um conjunto de versos, e, por uma pequena quantia, ficamos a saber o nosso destino – “fal” em persa. A campa em si é um local obrigatório para se visitar em Shiraz. Constrastando com o aspecto cru da cidade, a campa é um belo e calmo jardim.

Você deve ser o motorista...” respondo-lhe. “Morteza” apresenta-se, entregando um cartão e um sorriso contagiante. Não poderia estar mais contente com quem me iria levar a Persepolis. Morteza é a personificação da simpatia persa. Gentil, educado e muito jovial. Pelo caminho – uma estrada que corta as montanhas e que por si só enchem os olhos – conta-me como é amigo de um outro Português, também João, mas neste caso, Pedro. Descreve as peripécias desse João e como ele ficou raptado pelo período “dos melhores 22 dias da sua vida” entre o Paquistão e o Irão.

Conta-me um pouco da sua história de 62 anos. De como era trabalhador da petroquímica no tempo do Xá. E de como, depois da revolução, se despediu por não conseguir trabalhar com os Mullahs. Vejo como esta revolução teve impacto na sua vida, e como nem sempre a “revolução” tem o melhor desfecho. Guia-me de volta à sua juventude e de como os aldeões conduziam os primeiros carros. Quando me explica que eles pensavam que o espelho retrovisor servia apenas para ajeitar o cabelo, não posso deixar de largar uma gargalhada sentida. É um verdadeiro contador de histórias, e pelas suas palavras viajo um pouco pelo país que já não existe. Ao chegar ao meu destino, ainda me acompanha até comprar o meu bilhete para Persepolis.

E este local, apesar de meio despido, é uma lembrança que esta é uma terra de grandes impérios. Da campa de Artaxerxes, percebe-se a escolha do local. Uma planície ampla é o cenário perfeito para o palácio de um grande império. Vagueio um pouco por aqui e por outros tempos. Imagino o que as comissões estrangeiras devem ter sentido ao entrar pela escadaria monumental à sua entrada. Do cimo, trompetas ecoariam, e demonstrariam, pelo som, a força deste império.

Após esta visita ao passado, vou para outra máquina do tempo: Naqsh-e Rostam. São os tumúlos gigantescos de Darius I, II, Xerxes I e Artaxerxes I. Apenas conseguimos ter a noção da sua dimensão quando observamos outro ser humano – sempre de aspecto minúsculo – a olhar espantado para o mesmo. Das várias inscrições uma parece um aviso ao limite que a Europa teve. Num baixo-relevo o rei persa segura pela mão o imperador romano, enquanto outro se ajoelha. Aqui foi Roma que prestou vassalagem a outro grande império.

Volto à companhia do simpático Morteza, enquanto regresso a Shiraz. Dá-me várias indicações sobre os belos locais que este país tem para oferecer. Explico-lhe que já vi o lindíssimo masoleu Aramgah-e Shah-e Cherag, ou que me perdi pelas misteriosas e infintas ruelas dos bazares desta cidade. Aí é impossível não deixarmos a imaginação nos guiar, enquanto passeamos à deriva. A tapeçaria é dominante, cortada pelas especiarias, perfumes e chás. Refiro-lhe que me falta apenas experimentar uma especialidade local – Faloodeh Shirazi, um gelado. Prontifica-se a me levar ao local que me tinham indicado. Uma gelataria por detrás do forte que domina o centro da cidade. Este forte, austero por fora, mas delisioso por dentro, marca o fim da Avenida Zand - estrada que corta toda a cidade. Despeço-me com um obrigado muito sentido e a certeza de que não poderia ter encontrado melhor pessoa para me transmitir o que esta cidade tem para oferecer.

Isfahan

O meu espírito retorcido tem destas coisas. O normal é começar o périplo iraniano com Isfahan (isto se não se quiser ficar em Tehran). Eu tinha de fazer ao contrário e terminar nesta cidade. E em bom momento o fiz. Isfahan é a pérola da Pérsia. Uma cidade com muita vegetação e um rio que a separa em duas partes (pormenor que salta à vista depois de passar tanto tempo sem ver água). A cruzar esse rio estão inúmeras pontes. Umas mais modernas, outras com um rico historial. As mais antigas – e as que gostei mais – são a Si-o-Seh e a Khaju. Ambas construídas no tijolo amarelado típico desta região. São pontes entre o norte o sul, entre a realidade e a imaginação. Belos sítios para ficar e contemplar a beleza do rio Zayandeh e das suas margens. É uma cidade que se passeia por aqui. Entre uma estrada de árvores, flores e arbustos encontramos algumas estátuas, recreios e máquinas de exercício. É algo imperdível.

Mas este corredor de arvóres continua pela avenida principal – Chahar Bagh Abbasi. Nos seus lados, o corre-corre normal das cidades iranianas. Trânsito, muitas lojas e cores e muito movimento. No seu meio, uma tranquilidade contrastante. Daqui chega-se à Praça Iman. Uma ampla e geométrica praça. Contém o que de melhor a Pérsia tem para oferecer: o bazaar a norte, a mesquita Iman a sul, a leste a mesquita Sheikh Lotfollah e a oeste o Palácio Ali Qapu. A sua beleza não está apenas nos seus monumentos, mas na forma como a sua decoração subtil, apenas rasgada pela lúxuria dos referidos, nos deixa num estado de tranquilidade. Por detrás desta praça está uma cidade que vive. Um cidade que corre e se movimenta. Aqui parece ter um ritmo mais calmo e ligeiro.

Um bom sitio para sair é pelo Bazaar. Local sempre propício à imaginação e à satisfação da nossa vontade de observar. Cada detalhe deixam-nos uma recordação que mais tarde nos irá fazer sorrir. E, mesmo perdido no meio das suas ruas fechadas, acabaremos por ir parar à parte mais antiga da cidade. Aqui o cenário é bem diferente da beira-rio. O amarelo desértico é dominante. Esta zona é constituída por inúmeras ruas estreitas em que nos apetece ficar perdidos. No entanto - e sob pena de perdermos demasiado tempo a chegar a algum lado - vale a pena não o fazermos com muita “intensidade”. Aqui existe outro momento “wow”. Trata-se da Mesquita Jameh. Uma verdadeira homenagem à evolução da arquitetura islamica. Por fora passa completamente despercebida. Mas uma vez lá dentro, o tempo é para contemplar todo o seu espaço.

Para completar a cidade nada melhor que ir ao quarteirão arménio. O caminho para lá leva-nos à extensa avenida Tohid. E por estes lados, o moderno convive com o clássico, as ruas amplas com os becos estreitos. Caminha-se e encontra-se as lojas que nos habituamos a ver noutros contextos (Apple, Adolfo Dominguez, Nike, Puma, Geox, etc...). Aqui têm um sabor diferente. É mais um sitio para onde deixarmos ir até onde os nossos pés aguentarem. Encontraremos numa loja, num sinal, numa flor, na cor de um prédio, ou no simples movimento natural da cidade, interesse suficiente para ficar.

Claro que tudo isto é embrulhado pela simpatia dos seus habitantes. E em qualquer oportunidade falarão contigo, ajudar-te-ão ou tentarão te compreender - mesmo que o máximo de palavras comuns sejam uma dúzia. Uma simpatia que guardarei sempre. Um enorme presente, talvez a maior pérola que podes levar contigo.

E por debaixo do véu...

…está um mundo que espera por ti. Cada cidade é unica. Guardo o movimento de Tehran, a simpatia de Shiraz e a tranquilidade de Isfahan. Saio com a sensação que irei voltar. Apenas levantei um pouco do véu. E nesse pequeno espaço encontrei, acima de tudo, uma riqueza nas pessoas que cruzaram o meu caminho...


2 comments:

  1. olá João. Bom blogue. vou seguir-te de perto. grande abraço e boas aventuras.

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  2. Viva :)

    Obrigado :) ainda estou um pouco a definir o tom e a experimentar. Espero que as viagens estejam a correr bem

    Um abraço

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